O RETORNO DO MUTUM
"No meio da mata eu vi
Um piá de dois mutum
Piava que arretumbaba, maninha
Tum, tum, tum."

Canção popular brasileira,
interpretada por Renato Teixeira e Paranga.



Passei minha infância na roça, entre as décadas de 1980/90, onde as atividades invariavelmente giravam em torno de aventuras na natureza. Andar pelas matas observando toda a diversidade de seres vivos era uma rotina diária.

E tinha muito bicho para ver naqueles anos do fim do século passado.

Mas de alguns, a gente só ouvia falar, como o mutum (Crax fasciolata). Por vezes ouvi os avós contarem de como eram abundantes na região, como eram presas fáceis para caça e sua carne saborosa. Quando vim ao mundo, porém, séculos de caça indiscriminada haviam cobrado o resultado e não pude, por décadas, conhecer esta ave - antes tão comum - a não ser pelos relatos dos antepassados.

Conhecida desde dos tempos coloniais, chamou a atenção dos naturalistas que visitaram o Brasil a partir do século XVII, Thomas Lindley, na "Narrativa de uma Viagem ao Brasil" em seu diário de agosto de 1803 assim descrevia um encontro com o mutum: "Caminhando pela orla da mata, vi pássaros de plumagem brilhantíssima, um deles quase do porte de um peru. O mutum é particularmente vistoso, de um azul profundo, que se aproxima do negro, tendo a cabeça e os olhos de notável beleza."

Avidamente perseguido como caça, era presa fácil de se abater por sua docilidade, como relatam os diversos viajantes que passaram por aqui ao longo dos séculos. Spix e Martius, em sua "viagem pelo Brasil no ano de 1817, relatam:

"O cercado da casa estava guarnecido com uma porção de cabeças de onça, e o proprietário da casa deu prova de ser um provecto caçador, pois, sob a sua guia, ainda antes de escurecer, matamos uma onça e um mutum. Essa bela ave não é rara, nas matas virgens daqui [sertão de Minas Gerais] em direção a Bahia. Os índios muito apreciam a sua carne, parecida pelo sabor com a do gado montês, com as suas penas negras lustrosas, que são empregadas como adorno. Encontra-se frequentemente o mutum domesticado nas casas dos índios, e parece-nos que, nos países mais quentes da própria Europa, eles poderiam naturalizar-se tão facilmente como a nossa galinha caseira."

O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied que também visitou o Brasil entre 1822-1825 relata como o mutum se denunciava pela voz, facilitando a caça:
"o mutum é uma grande e bonita ave, encontrada somente onde existe a proteção de uma mata fechada(...) A primavera já ia muito avançada, e ouvíamos frequentemente, nas florestas, a voz forte e grave do "mutum" (Crax Alector, Linn) que ecoava pelas brenhas, facilitando muito a caça dessa grande e bela ave. Ela aparece em maior quantidade na época em que os rios enchem."

Karl Von den Steinen, em "O Brasil Central". Expedição de 1844 para a exploração do Rio Xingu, dá testemunho de como eram caçados no norte do país: "Castro caçou dois mutuns, oferecendo-me um para companheiro de canoa. Um deles é um mutum-"cavalo", o bico de um vermelho de lacre, todo fanfarrão, tendo na cabeça um penacho balouçante, um tanto parecido com o peru; é tão manso que lembra os pinguins da Geórgia. do Sul. O outro é um mutum-"pinim" menos belo e com um bico amarelo de ponta preta."

E o naturalista francês, Paul le Cointe chama a atenção para a facilidade de sua caça e excêlencia de sua carne:
"Mutuns - Bonitas aves, do tamanho de um peru; bico arqueado, tendo por cima uma protuberância córnea; poupa frisada; plumagem geralmente preta; cauda comprida. Amansa facilmente, mas engole todos os objetos pequenos que se acham ao alcance de seu bico: anéis, botões, moedas, dedais... Vivem na grande floresta em bandos pequenos; seu voo é pesado, ruidoso; pousam de preferência nos galhos grossos das árvores médias onde é facil alvejá-los; um mutum é uma soberba peça de caça, pela excelência de sua carne."

Um casal de mutuns. Transações da Sociedade Zoológica de Londres Vol 9 -1875-1877 - Joseph Smit.
O mutum está presente na cultura brasileira, com diversas expressões em nosso folclore, Geraldo Hoffman, em "O novo céu dos navegadores" relata que "Alguns índios do Norte do Brasil consideravam o Cruzeiro do Sul como sendo o "Pai-do-Mutum". O mutum é uma ave (...) predominantemente negra, tendo apenas o abdômen branco. Segundo índios do Brasil central o mutum celeste seria a mancha escura adjacente ao Cruzeiro do Sul, enquanto as estrelas da constelação formariam um laço (armadilha) para capturá-lo".

Henriqueta Lisboa, em coletânea de lendas e mitos brasileiros, relaciona a lenda "O mutum e o cruzeiro do sul":

"Estavam dois irmãos em sua casa quando de manhã ouviram um mutum cantar.
- Vamos, meu irmão, frechar o mutum que está cantando?
- Vamos, eu espero por ti.
Foram frechar. Quando lá chegaram e ouviram o mutum cantando, entesaram logo o arco, mas, olhando novamente, viram que era gente que estava sentada no pau.
O mutum falou imediatamente.
- Não me freches, meu neto. Queres ir comigo para o céu?
- Vou.
- Você quer então ir comigo?
- Vou.
- Então vamos já.
- Vamos.
- Eu vou adiante.
Foram logo para o céu transformados em estrelas."





Essa ave é um exemplo do resultado positivo da proibição da caça no Brasil a partir da década de 1970. Praticamente extinto da região sudeste, o mutum vem repovoando nossas matas ao longo das últimas quatro décadas, e atualmente já pode ser encontrado com facilidade no entorno das fazendas do interior de Minas Gerais, onde costuma se alimentar nos quintais, junto com as galinhas.

Em Sacramento MG, já pode ser visto até na área urbana, como na mata ciliar do Bosque do Ipê. Fique atento!

*Artigo originalmente publicado na Revista Destaque In, n. 92, ago 2016.