O ESPÍRITO DO CERRADO
Tirei o título desse post de uma sugestão do amigo Geraldo Junior França. "O Espírito do Cerrado" personifica perfeitamente a índole fleumática e misteriosa desse enigmático canídeo, solitário habitante dos imensos campos nativos da Serra da Canastra.



Camuflada entre a ramagem, a silhueta do lobo-guará reforçada pela belíssima luz da canastra faz jus ao epiteto: "O Espírito do Cerrado".
Há tempos eu buscava um bom registro do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus). Embora por vezes já o tenha encontrado, nunca as condições foram propícias para realizar um registro à altura da beleza dessa espécie ameaçada de extinção. Por vezes estava longe demais, outras, demasiado arisco, a luz muito escassa... ou muito dura, o fundo "sujo" ou até mesmo o ambiente por demais "humanizado" como no Santuário do Caraça na Serra do Espinhaço, onde presenciei um belíssimo exemplar do guará que cotidianamente vem assistir a missa do adro da igreja.
Nédio e Alessandro fotografando o lobo-guará sob os últimos raios de sol do dia. Foto: Camila Machado.
Dessa vez foi diferente. Finzinho do dia de São João, o sol já se pondo, últimos minutos da "hora mágica" tão desejada pelos fotógrafos de natureza. Depois de um longo dia guiando amigos pela Serra da Canastra e proporcionando avistamentos incríveis de espécies ameaçadas como a águia-chilena (Geranoaetus melanoleucus), águia-cinzenta (Urubitinga coronata) e o raríssimo pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), quando voltávamos para casa em silêncio, ouvindo a batida intermitente do antigo motor Mercedes que equipa uma valente Toyota Bandeirante, eis a voz assustada do amigo Nédio, quebra o silêncio: - Lobo!

E o avistamos a alguns metros do carro... Tranquilo, com sua esguia silhueta elegante, caçando sob o pôr do sol; olhou-nos por alguns segundos com certa curiosidade, e voltou à sua atividade de caça! Não fugiu como de costume, não desapareceu como um fantasma; continuou ali, sereno, atento aos movimentos do capim-estrela, na certa farejando alguma codorniz. Aproximamo-nos devagar e pudemos observá-lo durante um bom tempo, enquanto documentávamos a cena iluminada por uma luz sobrenatural, somente possível de existir nos altos chapadões da Canastra. A luz difusa criou uma atmosfera etérea que traduziu-se nas fotos, revelando um efeito exatamente como eu imaginava ideal para representar a personalidade mística do lobo-guará.

A luz filtrada criou uma atmosfera etérea, que retrata perfeitamente a personalidade misteriosa do maior canídeo da América do Sul.
Durante o avistamento, ainda observamos um comportamento curioso e já descrito por pesquisadores: a associação de caça entre o lobo-guará e o falcão-de-coleira (Falco femoralis). Conforme o lobo caminhava pelos campos limpos do Cerrado, o falcão o acompanhava, pousado sobre grandes pedras nas proximidades, esperando presas como codornas e insetos serem espantadas pelas atividades do lobo, para que então as capturasse em voos rasantes.

Documentamos toda a ação, apesar da pouca luz e a emoção do momento.
Lobo-guará observa o falcão-de-coleira (Falco femoralis). Curiosa associação para caça entre essas duas espécies.
O lobo-guará é descrito na literatura científica desde muito cedo, em 1872, o botânico francês Emmanuel Liais realizou uma expedição científica ao Brasil em que descreveu suas impressões: "O uivo do Guará é ouvido a uma grande distância; nas belas noites de lua cheia, quando os animais perambulam pelas pradarias, não é incomum ouvir os três tons fortes de seu uivo. É raro ver esses animais, que evitam o homem cuidadosamente e se escondem nos arbustos; o menor cão os põe em fuga, com apenas um latido... O Guará caça pequenos mamíferos e perdizes na pradaria, mas prefere insetos grandes, e às vezes até cobras. Alimenta-se especialmente de casca de árvores e frutas e, particularmente, com o fruto da lobeira. Esta árvore é muito abundante nos vastos campos abertos, e muitas vezes atinge o tamanho de uma grande árvore de maçã. "Ele é conhecido no Brasil como fruta-do-lobo e forma parte muito importante da dieta do lobo-guará, que dispersa suas sementes".
O lobo-guará caça entre a densa vegetação de capim nativo pequenos roedores, codornas e insetos.
Atualmente o lobo-guará tem travado uma verdadeira luta pela sobrevivência, devido à destruição do Cerrado brasileiro, um dos ambientes de maior biodiversidade do planeta. As populações de lobos-guará têm sofrido declínio significativo, com a perda de habitat sendo a principal ameaça a esta excêntrica espécie de canídeo. Projeções para o ano de 2040 indicam que a situação do Cerrado será ainda mais preocupante, indicando que mais 753.776 km² serão perdidos e o bioma terá 78% da sua área original destruída. O lobo-guará, sendo uma espécie restrita a esse bioma, tem cada vez mais perdido seu habitat para as extensas plantações.

A caça também já levou populações ao declínio pelo fato de crenças populares sobre partes do corpo desse animal. Com a expansão da agricultura, o aumento de conflitos devido a predações ocasionais do lobo-guará sobre animais domésticos tem causado grandes pressões sobre as populações remanescentes. Atropelamentos também são importantes causas de mortalidade em algumas populações. Somados, esses fatos colocam o lobo-guará na lista de animais mundialmente ameaçados de extinção.

O lobo-guará é vítima da má fama associada às histórias de "lobo mau". Temido pela população, é implacavelmente perseguido e caçado, embora seja um animal solitário, tímido e dócil. A rigor, nem lobo ele é. Evoluiu separado dos demais canídeos e não é parente próximo de lobos ou raposas, com quem também costuma ser comparado. Inicialmente foi classificado como pertencente ao gênero Canis (o mesmo dos lobos e cães domésticos) devido à sua aparência erroneamente interpretada como semelhante a de um lobo, embora também faça parte da mesma família, a dos canídeos. Posteriormente, com uma melhor compreensão da sua biologia, foi remanejado para um novo gênero monoespecífico (composto por uma única espécie), Chrysocyon.

Admirado, amado e odiado, o guará é um sobrevivente solitário, e segue firme na sua luta contra a extinção, esperamos que sua obstinação em sobreviver não seja em vão, que o seu espírito ainda permaneça onipresente nos campos naturais da Serra da Canastra e, num futuro próximo, volte a povoar os campos e cerrados de todo Brasil.

Foi uma viagem marcada por raridades, como o pato-mergulhão, uma das aves mais raras do mundo, que pudemos contemplar por cerca de 30 minutos, nadando calmamente nas águas cristalinas de um afluente do Rio São Francisco.
Durante o passeio encontramos a fotógrafa Birdwatcher Silvia Linhares, dona de uma impressionante lista de mais de mil espécies de aves registradas! Guiada pelo amigo Geiser Trivelato, Silvia buscava justamente registrar o pato-mergulhão.Na foto, Camila Machado, Silvia Linhares e Alessandro Abdala.
Priscila, Nédio, Camila e Alessandro - O pôr do sol marcou o fim de uma expedição a um dos maiores santuários de vida selvagem do Brasil.